IBIRA E AS GRAMAS DA TROPICALIA
Te
lendo senti que posso continuar a partir do que tu escreveu; já que
citaste no teu tom de vivência e percepção tudo que sente ter sido
o dia de ontem no festival no Ibira. Sem dúvida foi uma grande
sacada o formato do entra e sai. Uma transa gostosa entre lembrança,
dança e sol dourando tantas manifestações e tempos. O Tom Zé, que
começou com a música "Augusta, Angelica e Consolação"
com a Consuelo e logo na sequência anunciou o Emicida. Tom Zé sabe
gingar muito bem com todos os cabocos que entram no terreiro.. Ambos
estão se dedicando a si, e sabem do seu processo, então a cada
encontro e ato, um novo aprendizado. O Zé, já com seus alguns
cabelos brancos, e uns bons anos dedicado a si, aprendeu a dar mais
do que receber. Então, é realmente bom ver o Emicida clamando aos
sete ventos tudo aquilo que carrega na pele, no seu instrumento de
expressão de realidade. Então, vendo e lembrando dessas veias, vejo
o encontro de tempos e gerações atuando com os seus verbos no
presente que estabelecemos nossa relação com o mundo. Memorando a
manifestação do Tom, sinto na sua dança uma grande sacada - já
que ao invés de falar um texto bancando o politicamente correto,
simplesmente se mantém integralmente presente - Zé, transporta seu
espírito imediatamente telepático para aquilo que vem da lateral
periférica de suas letras. O que dizer da letra do Zé? Ele não
fala sobre Política, ele canta sua música "Politicar",
captada pelo ritmo do Emicida, que nos espaços dados injetava suas
frases "improvisadas". Independente do gosto ou filosofia
que o velha, foi um momento potente. Ver os dois cantando a sua
citada clássica, "Tô" - momento em que você chegou, se
encaixando - um espelho das apresentações toda hora em movimento, e
logo após Tô, foi chamado ao palco mais um tropicalista. Entrou com
seu cabelo branco (polido?). Sim, era Caetano, cantando as musicas
que todos cantavam, cada um de um jeito. Caetano era para mim, mais a
voz da minha memória, do que um cara que hoje admire sua postura.
Diferente do Tom Zé. Mas esse é só um ponto dessa rede de
sentimentos, ato, contexto em que estamos e vivemos. Todos somos uma
voz na multidão, então ouvir é sempre uma primazia. Caetano não
me representa. Mas sua musica alinha um tempo, hoje outro. Um pouco
do que foi ali é visto. Exatamente um meteoro que entra na orbita da
terra e ao chegar ao público é uma faisca. Uma faisca que me
incendeia, muito mais pelo que se cultivou nessa estrada tão
talhada. Fazendo uma ligação que não tem como dissociar o que é
meu, e o que é dele. Esse é o inconsciente coletivo. E por isso os
nossos referenciais mudam e navegam em nossa casca talhada nos passos
que nos seguem, acompanhar, criam permanência. Todas essas
lembranças ficam mais intensa em um dia de sol de raio nos gramados
tecidos de cores que combinam e transmitem personalidade para o
espaço comum do Ibira. Imagino os vários sorrisos de teus olhos
cintilando. Tu estavas bem do meu lado. Poderíamos ter nos
cumprimentado.. Mas de fato, não o ter feito, é um detalhe muito
pequeno, se em primeiro plano o que realmente importa é como
estávamos vibrando no Puera. Vi e até cumprimentei dois
conterrâneos. E estava em companhia de mais dois em uma parte do
festival. Jéssica e da sua mãe, Fátima. Tinha os que buscavam um
lugar na sombra, e os que se entregavam a uma dança ao sol. Sentado
era só um momento do festival. Com aquele sol e céu aberto, não
tinha como eu querer ficar sem os movimentos circulares nas
frequências dos corpos na música. É muito poderoso o ato de sair
de casa e querer muito estar em um lugar. Dispor-se a realmente em
viver aquele momento. Os parques e praças nos proporcionam essa
entrega, ou ao menos o convite.. porque a entrega mesmo em um tom
mais real, é um desafio bem individual, reflexo de muitas lentes
coletivas em certa harmonia no consenso expressivo que nos compõe.
Sinto, que foi nesse nó de mim, que pude sentir as tantas expressões
interagindo com aquilo que os músicos já haviam construído antes
de entrar no palco. E assim fui. Fui mais e mais para o sol, onde
tinha um baile de corpos em ritus ciganos. Porque ouvi de um ser
andrógeno, o verbo, "existindo uma relação profunda, é
sempre bom acenar ou emanar bons fluídos". Acho que foi isso
que fez eu ver o show tão perto de mim. E tu de ti. Uma coisa que
ainda pouco foi dita aqui em casa pelo Andy e Talitha, "como o
fato de ter uma banda que acompanhou todos os músicos do festival
deu uma clima intimista para as apresentações". Esse formato
de show, essa transa, entra e sai de dos músicos é uma percepção
já obtida por esse festival e suas edições do Rio e Sampa. E
memorando as edições, por que não lembrar da edição organizada
pelo Jardes Macalé a 40 anos atrás, em 1973 (que deu vida ao tão
apreciado disco, "banquete dos mendigos, lançado 6 anos
depois"); que marca o show de comemoração dos 25 anos da
declaração universal dos direitos humanos. E isso acontecendo em
plena ditadura militar. O que em 73 foi o Macalé o mago regente, no
dia 15 de dezembro de 2013 presenciamos na mesma esfera e olhar o
Emicida e Criolo. A essencial diferença, é que do banquete de 73,
só ouvi o disco, enquanto o banquete do Ibirapuera, ouvimos, vimos e
sentimos podendo escrever sobre todos esses atos. O ato de ter visto,
ouvido, vivido e sentido. O que acaba se tornando essa manifestação
em tentativa de linguagem escrita. Sim, somente tentativa. Ligando
essa linha do tempo - que na sua escala representa 40 anos, dos quais
vivemos 25 - posso imaginar sua emoção de ver vários cometas na
sua frente. Todos de uma vez só. De uma só vez. Então como não
achar em você uma sensibilidade que as vezes não se pode perceber -
mesmo que com um outro olhar se possa? - igual aquela busca de olhos
3 pra 1 que durou algumas boas horas para se cruzarem e atravessarem
o tempo, e como já pichei em alguma parede do bexiga "Um
encontro que não precisa de definição. Espaço para o coração
que habita. Terna lembrança. Puro devaneio. Quem sabe quebramos o
muro da realidade. Para de fato adentrar no invisível das coisas. No
fantástico das relações?!" E por essas vias, como não sentir
seu olhar apaixonado por São Paulo. Agora, após 3 meses. Isso me
lembra a conversa que tivemos no 3 pra 1 sobre a chegada na cidade. O
que nessa mesma linha da arte dos encontros, foi no 3/1 que te
reencontrei pela 3 vez - Os dois em the web of life ou occult
connections? Nessa costura de passado que compõe o presente, vejo a
costura de Macalé, convidando em 73 os nós cegos: Paulinho da
Viola, Pedro dos Santos, Jorge Mautner, Edu Lobo, Luiz Gonzaga,
Johnny Alf , Raul Seixas , Soma, Chico Buarque e MPB4, Milton
Nascimento, Gonzaguinha, Dominguinhos, Gal Costa, Luiz Melodia,
Edison Machado.
Escrevendo
na história um encontro clássico da música popular não apenas no
aspecto musical, mas de como pode-se transcender para um protesto
social sem violência e brutalidade, usando apenas a inteligência e
a voz. O que torna a mensagem ao Mandela, ao Parque Augusta, ao
movimento de ocupação dos espaços públicos um mantra espectral.
Os mendigos brasileiros são a atração principal do espetáculo, na
verdade, mas que a atração, são a ponte, um caminho que vemos se
multiplicando em várias camadas. São muitos nascimentos, e no meio
de todo esse redemoinho, tem os pequenos pontos de expressão que
costuram despretensiosamente seus sentimentos? lembranças? Memória?
Penso, que expressão daquilo que se vive, e que pelas linguagens
aprendidas tentam se eternizar, se imprimir em nós. E essa é a
linguagem outra da outra linguagem que mais importa. Aqueles rios de
corpos encantadores de onda de parque, pura infância.
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