MORMO



MORMO

Lembro-me do dia que resolvemos viajar para Mormo. Você estava entusiasmada com a viagem. Essas viagens que fazíamos de uma ora para outra, sem planejar nada, ou melhor, quase nada; Porque tínhamos sempre uma quantia de dinheiro de baixo do colchão.
Era um dia bem chuvoso... Os que mais gostávamos. A chuva caia. As casas fechavam-se. Saímos e ninguém nos viu, pois estavam todos com suas portas e janelas fechadas. De certa forma, sempre estavam com suas portas, olhos e janelas fechadas. Primeiro para si, depois para os outros hábitos. Há diferença assusta para aqueles que já estão habitados com uma tela de vidro com quatro cores listradas em horizontal.
Mormo era um lugar de poucos habitantes. Tem uma arquitetura colonial nas casas, uma beleza detalhada.
Chegar em Mormo foi uma grande aventura. Éramos quase dois adolescentes aflorando caminhos belos. Buscávamos algo que não sabíamos ao certo o que era. Mas os caminhos que sempre estávamos buscando estavam no todo maior que nos cercava. Deis do momento que decidimos sair abrindo todas as portas, olhos e janelas que encontrássemos em nossos caminhos. Quer dizer... Todos não. Todos, no sentido de ouvir a intuição.
O caminho era novo para nós. Não sabíamos o que íamos encontrar nele. - Como diria Alberto Caeiro: O caminho engole os pés daqueles que andam com os pés. Nós não tínhamos pés. Tínhamos sonhos casados em olhares. Alguns tão simples que era mais gostoso sonhá-los, imagina-los em forma sonho-sonho, onde tudo é como é. Não assume forma, cor ou cheiro definido.
Mormo ficava em uma colina bem alta. O dia começava ás 6 horas da manhã. A rotina era calma e agradável.
Gostávamos de ir a feira tocar nas frutas, tão vermelhas, amarelas, verdes ou qualquer outra cor que possuíssem. Era uma cidade de costumes interioranos. As pessoas todas se conheciam á bastante tempo. Tinham histórias ligadas a gerações. Avós, Tios, Netos.
A cidade era bem fria, tinha muitas entradas de vento e era bem perto da lua. As calçadas eram de paralelepipedos-vermelhos. As casas tinham janelas grandes e grossas, de gesso revestido para absorver o calor com a mesma rapidez que liberava o que justificava o frio da cidade.
A noite muitos moradores se reuniam para fazer cantos acompanhados de alguns instrumentos convencionais e muitos improvisados com madeira, lata e cocos. O som era curioso, de origem fonética nunca antes capitada pelos meus tímpanos.
Na primeira oportunidade perguntei: O que vocês estão cantando?
Um senhor barbudo, alto, com traços fortes no rosto me olhou nos olhos esboçando um largo sorriso e disse: São apenas sons que resultam da livre passagem de ar pela boca. E logo voltou cantar e dançar com o restante dos cancioneiros.
Ficamos maravilhados. Eram musicas lindas. Expressavam a harmonia e interação existente no ambiente. Não existia um único autor. Todos eram autores daquela libertação.
Mormo realmente era um lugar para se viver.
Fomos para lá sem tempo definido, para ficarmos na cidade (Na verdade nunca decidíamos essas coisas). Ficamos alguns prazerosos meses olhando aquele céu, sentindo aquele vento, reavivando uma beleza que parecia morta ou adormecida bastante tempo em nós e que agora estava dando seus ramos de belas flores colhidos nas manhãs que o nosso corpo se entrelaçava no cetim nupcial de amor.
Tivemos que voltar!
Foi um choque para as nossas percepções.
Por sorte estava chovendo quando voltamos. Chegamos e as casas estavam com suas portas e janelas fechadas, e suas pinturas descascadas.
A primeira manhã começou com um acidente de carro. Não era no quarteirão, mas era esse o assunto do dia. No dia seguinte a morte do menino de oito anos. Todos os dias alguma coisa do gênero era manchete na vizinhança, e as casas fechadas às seis horas da noite.
Alguns meses depois num dia qualquer vi as casas com portas e janelas fechadas em pleno sol de meio-dia.
Cheguei a casa. Tomei um banho bem gelado. - Laura chegou. Todas as nossas coisas estavam arrumadas nas malas.
Ela abriu a porta e eu estava de peitos para o ar na cama.
Levantei-me e olhei firme nos seus olhos disse: Somos o mundo que tocamos, ouvimos, olhamos, cheiramos, vivemos...
Ela veio lentamente em minha direção me olhando calorosamente, me fazendo deitar em seu colo, fazendo carinho em meus cabelos, soprando os cílios dos meus olhos, passando lenta e levemente a ponta dos dedos no meu rosto, como se estivesse me desenhando.
Abri os olhos e Laura estava me olhando misteriosamente. - Não disse nada. Fiquei tentando entender a voz de seu olhar. Eles estavam vivos e diziam coisas intraduzíveis em palavras. As palavras eram sensações faiscando em minha cabeça, seguindo por todas as veias do meu corpo até chegar às quatro cavidades do meu coração.
Nesse momento segurei suas mãos beijando-a, até chegar a seu pescoço, seu odor era doce, convidativo. Soprei seus cílios beijando seus olhos, seu rosto, sua boca que respondeu com mordiscadas e movimentos carnais. Nadamos uns nos corpos do outro. Fomos levados por um mar salgado de prazeres que nossos puros absorviam.
No silêncio de nossas palavras e na fala nossos olhos, pegamos tudo que nos servia. Descemos a escada e fomos embora deixando todas as portas e janelas da casa aberta.

Samir Raoni
"Esse Mormo é de um mundo cheio de portas a serem desvendadas."
O sol e as atividades simples e belas daquele povo feliz.

Comentários

  1. ABSOLUTAMENTE LINDO! De sentidos, de movimentos, de envolvimentos. "Não disse nada. Fiquei tentando entender a voz de seu olhar. Eles estavam vivos e diziam coisas intraduzíveis em palavras. As palavras eram sensações faiscando em minha cabeça, seguindo por todas as veias do meu corpo até chegar às quatro cavidades do meu coração." - Quem de nós já não tentou , por horas, adivinhar as palavras, os silêncios do outro?! E que sensação magnânima essa, de sentir o outro e - mais - se deixar ser SENTIDO. Lindo, meu caro, LINDO! :)

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